A luz que contém a sua ausência

A Bela de Dia (1967)
Tradicionalmente considerado filme erótico, Belle de Jour, do aclamado Buñuel, é, na realidade, um filme sobre o sonho. Contraditório? Assista.se à espiral de realidade dentro da realidade que é no fundo um sonho que é no fundo a realidade que representa a história de Séverine e Pierre, a contradição, a ilusão, omissão e engano são termos que virão à memória.

A personagem interpretada magistralmente por Catherine Deneuve representa a bela adormecida dos tempos modernos, em aparente dormência e frieza, que não procura mais que a excitação do que não é permitido e lhe habita os sonhos. Os sonhos de Séverine não acontecem apenas quando esta dorme ‐ com frequência o marido irrompe e lhe interrompe fantasias questionando‐a sobre em que pensa.

Bela de Dia, alter ego que assumirá ao entrar em funções pouco recomendadas numa conhecida casa de passe em Paris, à noite retoma a sua inexistência. 
Percorrer Belle de Jour é não ter a certeza de que passos estão a ser dados embora de início o filme conduza a essa ilusão ‐ afinal, quem não quer ter certezas? Sob a capa da vulgaridade e de certo fetichismo, oculta‐se uma espiral de acontecimentos cuja natureza não é completamente preto no branco. Esse imaginário ‐ também ele contraditório ‐ de binómios de raiz maniqueísta é recorrente em Bela de Dia. Eterna dualidade entre preto e branco que se complexifica com a chegada da personagem do conde e com a introdução do conceito de sol negro. Este sol negro do conde remete para a luz que contém a sua ausência sem se anular e não exclusivamente para a existência de elementos opostos ‐ dentro de um habita o outro sem que a existência seja incompatível desse modo.

Séverine conduz ou é conduzida pelas estreitas vielas de uma vida dupla a que se sente inexplicavelmente atraída ‐ e que é, ao mesmo tempo, uma dupla vida de sentimentos. De dia, sente‐se viva e preenchida, à noite profundamente aborrecida, ainda que aos poucos a experiência diurna acabe por influenciar a sua personalidade nocturna. Lentamente, as duas Séverines fundem‐se mas ambos os mundos se fundem de igual modo, tornando cada vez mais difusas as fronteiras rígidas que os separavam. Tão rígidas como o jogo de forças, poder, submissão, domínio e ordens com que se familiarizou na casa de Anais, as fronteiras quebram‐se para o lado mais fraco e a Séverine nocturna será inundada pela experiência e preenchimento da Séverine diurna.

À quoi pense toi, Séverine? Pergunta Pierre com frequência mas Séverine está ausente a viver em pensamento a vida que gostaria de viver, sonha acordada. No final, contudo, os sonhos cessam e são possíveis inúmeras especulações sobre se Séverine se encontra acordada ou se está finalmente a viver o seu maior sonho na realidade. Tal como a cena da misteriosa caixa do cliente japonês na casa de Anais, que Buñuel nunca quis explicar, também as conclusões e definições permanecem difusas e dificilmente definitivas.

Todo o filme é composto de subtilezas, desde as referências a felinos em momentos chave (na sua aproximação simbólica e sexual à mulher) até à associação onírica entre a carruagem com sinos e as fantasias de Séverine (a ironicamente severa Séverine). Subtilezas surrealistas, talvez, naquela que foi a grande aposta de Buñuel após o seu exílio mexicano e que não foi aposta ganha, tendo em conta o choque entre conservadorismo da sociedade de então e as imagens de perversidade e sexualidade.

Classificação: 4/5

Por CS

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