Conduzir pela longa estrada

Boyhood (2014)
Honesto, directo e ambicioso, Boyhood oferece-nos ainda o presente de ter sido filmado ao longo de cerca de uma década, apesar de, no total, o tempo de filmagem perfazer apenas cerca de 40 dias. 
Durante 12 anos, Richard Linklater acompanhou o crescimento de uma família cujo núcleo se expande e mingua, em adaptação orgânica, natural e própria do que representam as relações humanas.

Aparentemente simples, a sua estrutura complexifica-se à medida que as ligações se quebram para se refazerem mais à frente. É bom saber também que o tempo aqui passou na realidade, o que confere a todas estas relações ficcionais a sensação de serem baseadas em vidas que podem estar a acontecer mesmo ali na casa ao lado. A passagem do tempo real assume maior importância conquanto a evolução dos personagens vem acompanhada da evolução do próprio do actor, física e psicologicamente, o que traz diferente perspectivas sobre o modo de filmar e da interacção entre actores, realizador, equipa e até mesmo de como se mantém ou altera a visão de cada um dos intervenientes sobre a história e interpretação.

Teorias à parte, Boyhood senta-se numa cadeira de baloiço à porta de uma típica casa do Texas, descontraidamente bebe o seu chá gelado e prepara-se para tomar muito do tempo de quem o quer ver para contar o percurso de uma normalíssima família. Casamentos, divórcios, adolescência, a escola, as bolsas de estudo, a faculdade, o sexo, as experiências, praticamente nada de que não se tenha ouvido falar ou vivido.

Ao longo de quase três horas de filme, o espectador é confrontado consigo mesmo, com as reflexões próprias de cada lado da história. A evolução dos filhos através da adolescência até à entrada na idade adulta poderia tornar-se predominante mas o foco no crescimento dos adultos acaba por assumir tanta ou mais importância. Sim, porque Boyhood não é condescedente e aquilo que nos mostra, para além de não ser nem definitivo nem conter juízos de valor de grande monta, é a evolução de cada interveniente. Os adultos mostram as suas falhas, mostram como ser-se adulto não significa saber tudo e os erros continuam pela vida fora - afinal, faz parte. Escolhem-se os parceiros errados, fazem-se escolhas e as respostas continuam a ser as mesmas que a adolescência avidamente procura responder, na ansiedade própria de crescer.

Boyhood podia chamar-se Childhood mas parece propositadamente optar pela primeira designação como que tentado mostrar que a infância ou adolescência não são estados definitivos e definidos na evolução de cada um - embora em termos práticos assim seja encarada. 
Interessante seguir a criação de núcleos familiares fora da órbita inicial, à medida que os membros decepados do núcleo original se vão regenerando e criando novas vidas, começando do zero novamente, percorrendo tantas vezes quanto necessário a adolescência de sentimentos, de oportunidades, de novos começos, novas relações. Tudo é novo, tudo é duplamente novo, novidade vivida em tempos diferentes, com visões diferentes mas simultaneamente com a sensação de que se percorre novo caminho com novas ferramentas.

Dentro de Boyhood, a simplicidade é a chave de poder dar-se a tantas interpretações quantas as pessoas que o vejam. Porque as pessoas estão ali, estão ali as vidas do dia-a-dia, com que todos se podem relacionar e ligar, não se limitando a mostrar a visão de apenas um dos intervenientes mas a de todos, sem julgamentos - as conclusões ficam para quem vê.

A paisagem igualmente simples ludibria tanto quem assiste ao filme como as personagens, aquelas longas e intermináveis linhas rectas de estrada, a paisagem árida, contínua e desprovida de interesse, contudo hipnotizante. Naqueles momentos não se pensa em nada, segue-se sempre em frente a apreciar o caminho sem entrar em considerações filosóficas. Essas também têm lugar, sobretudo quando o pequeno Mason cresce e se torna um acérrimo crítico das tecnologias de informação e da aridez do mundo moderno. Eterno incompreendido, conclui que o melhor mesmo é apreciar o caminho porque, no fundo, ninguém sabe muito bem como é que as coisas acabam ou qual o fio condutor que guia os protagonistas enquanto aqui andam.

Classificação: 4/5


Por CS

Ouroboro ou como aprender a amar a contradição

Interstellar (2014)
Ficção científica? Se a resposta a esta pergunta for afirmativa quando vem à memória Interstellar, então a vida vivida é ficção. Colocar o rótulo ficcional no mais recente filme de Nolan é demasiado redutor para algo que almeja muito mais que apenas o céu mas se queda por terra - no melhor dos sentidos.
No início era o verbo e é pelo início que Nolan começa - passando o pleonasmo: do pó vieste, ao pó tornarás. Interstellar, entre as estrelas, até ao infinito e mais além é um filme sobre raízes, sobre aquilo que liga os seres humanos independentemente do local onde essas ligações se estabelecem. O espaço sideral é aqui irrelevante, talvez apenas um pretexto para ludibriar ou desviar a atenção, muito ao estilo de Nolan - que poucas vezes percorre o caminho mais óbvio ou directo para chegar ao destino proposto. Quando se parte do pressuposto que se vai assistir ao início, tudo se prepara e revela como sendo o derradeiro momento, como se de um ouroboro se tratasse. 

Interstellar é um filme que se dobra sobre si mesmo, contrário à definição de sequência lógica e cronológica. Os diferentes mundos tocam-se, os tempos intercalam, o passado é o presente é o futuro e não necessariamente por esta ordem. Para quem procura compreender através da lógica (embora a pedra de toque seja a ciência), este não é o caminho mais acertado - pelo menos, não por entre estas estrelas.
Muitas vezes acusado de frio e distante na sua abordagem cinematográfica, Nolan parece ter-se inspirado em linguagem ao estilo Malick, tanto na aproximação humana como no modo como filma - Interstellar é um lírico deleite visual, estreitamente acompanhado por uma das mais inteligentes bandas-sonoras feitas nos últimos tempos em cinema. Humano mas não tanto, Nolan optou pelo espaço sideral para não se tornar tão próximo e acaba por não conseguir evitar o excesso de sentimentalismo que ataca algumas das sequências - falta de experiência tornada contradição?

A natureza humana é o que está no centro deste universo fílmico, nada mais do que isso, as fraquezas, as mentiras, as omissões, a falta de objectividade, a teimosia, a incapacidade emocional. Quando Coop parte para explorar novos mundos que possam substituir um exausto planeta terra, a sua viagem é pessoal - bem como para a restante equipa. Durante cerca de três horas, a busca prende-se com correr atrás das raízes e nem num futuro distante essas raízes cessam de surgir intactas sob a forma de cubos de memórias. Aquilo que Coop descobre nada mais é do que a sua ligação com os variados «eus» coexistentes em vários momentos diferentes, tentando comunicar entre si apesar de essa comunicação se encontrar aparentemente vedada. A criatividade e subjectividade sobrepondo-se à ciência conhecida como meio de escapar ao desconhecido, é essa a chave proposta numa contínua e aparente contradição. Se se aprende a viver com a contradição e tentar entender os saltos temporais de Interstellar, é um filme brilhante; se se tentar dar-lhe o sentido temporal tradicional (e, simultaneamente, artificial, que a própria vida não se representa a si mesma como um todo temporal contínuo e sem quebras), então Interstellar é chato e confuso. Entenda-se que ambos os filmes existem em paralelo, por isso Interstellar é tão genial quanto terrível, consumando e corporizando em si mesmo a eminente contradição que é o seu conteúdo.

Nolan criou o seu wormhole, constantemente dobra e desdobra a folha de papel, aproxima e afasta, foca e desfoca. Os seus personagens procuram planetas habitáveis distantes da terra mas aqueles planetas não respondem ou são imprevisíveis, gélidos, não soam simplesmente a casa. O que é que acontece agora?, pergunta-se a certa altura. Procura-se a resposta mas ela apenas existe quando é transposto o buraco negro, quando o seu vórtice desconhecido é o único caminho. Entrar na escuridão para encontrar a luz, encontrar as respostas que sempre permaneceram num único local: em casa (onde quer que ela possa ser encontrada). Ir procurar respostas longe quando elas sempre estiveram ali, é essa a mensagem em código Morse que Nolan está a mandar. E, para isso, o papel dobra-se, a caneta atravessa ambas as metades, os tempos encontram-se. Será que se fala de tempo ou de memória? Afinal, será que os personagens de Interstellar chegaram a partir? 


Classificação: 5/5


Por CS

Após a bonança

Sono de Inverno (2014)
Criar ilusões é uma característica humana, intrínseca, usada para fugir à certa realidade ou simplesmente por nela se encontrar bem estar - nessa representação que chega a parecer que é necessidade.
A visão de Nuri Bilge Ceylan acerca da descrita capacidade inata, vai tornando-se recorrente. Paira sobre os personagens uma dormência dos sentidos, uma contemplação infinita, como se o tempo fosse durar para sempre. No fundo, ele suspende-se sempre que em Sono de Inverno o realizador se perde na figura imponente de Aydin (anteriormente actor, agora rico, culto, escritor e filantropo anónimo). O tempo suspende-se quando a câmara tenta penetrar nos meandros do personagem através da sua nuca para depois se perder na escuridão encontrada, insondável, indizível.

No ar, por todo o filme, existem ideias que não são ditas, os debates assumem a aparência de discussão académica até ao momento em que os intervenientes deixam de fingir ou deixam de ter paciência para manter aparências.
Por entre casas escavadas e construídas na rocha, pela paisagem belíssima da Anatólia Central, Turquia, movem-se seres humanos que lentamente se mesclam com as rochas. A partir de uma certa idade pouco se muda, alguém diz, e acrescente-se que a distinção entre pessoas e o espaço inóspito que habitam pouco a pouco se vai diluindo. Obstinados, determinados, são os homens e mulheres de Ceylan, percorrendo atalhos de uma vida adiada, sonolenta não só no Inverno que irrompe tempestuosamente mas pelas outras estações afora. Sem objectivos, eivados de dependências materiais e emocionais, agarrados a uma miséria que tanto prospera no fausto como na pobreza.

No hotel de que Aydin é responsável, chegam e partem constantemente pessoas apreciadoras da natureza às quais se apega contando histórias e recebendo em troca as experiências dos viajantes. Mas no Othello (assim se designa o hotel) monta-se o palco em honra da sociabilidade farsante, a mesma que permite a coexistência de filantropia e exacerbado poder económico no mesmo personagem. 
Da peça apercebem-se pedaços, fragmentos, à medida que caem as máscaras, as mesmas que Aydin coloca simbolicamente sentado à secretária do escritório onde desenha há muito tempo a escrita da história do teatro turco. Quando a caça se adensa, algumas presas, apesar de mortalmente feridas, continuam a agarrar-se teimosamente à vida, persistindo, insistindo em respirar - tal como o coelho que o ex-actor alcança na imensidão nevada.

Dentro de espaços fechados, aos poucos os homens e mulheres de Ceylan perseguem-se e cansam-se, à semelhança do enorme esforço que é feito para laçar o cavalo selvagem da Anatólia que Aydin tanto queria para utilizar no hotel. Os animais selvagens que lutam e despendem de toda a energia possível para se manterem livres, lentamente se entregam a esse sono de Inverno, desistem de querer a liberdade que outrora fazia parte. Lentamente, também os homens e mulheres que habitam Othello se acostumam a não viver, adormecidos pelo conforto, pela falta de ter para onde ir, pela necessidade de calor ou simplesmente porque mudar já não parece uma opção. Já passou demasiado tempo, agora é tarde, confidencia alguém entre lágrimas.

Não se julgue etéreo ou até superficial, este Sono de Inverno, muito pelo contrário, é denso como o espesso manto de neve que se abate sobre o território das gentes obstinadas. Através dele, muitas conversas de pendor filosófico, nada é deixado ao acaso, nenhuma palavra é dita em vão, pesada e ponderada, todas elas atiradas para atingir pontos nevrálgicos. 

Visualmente belíssimo, Sono de Inverno é contemplação e confronto, é seguir a pé por atalhos gelados e descobrir que o gelo também derrete, que o calor do fogão ou da lareira ou do gerado pela ingestão de demasiado álcool é capaz de colocar a descoberto o que antes ficara ocultado pela aparente serenidade da neve. Por debaixo dessa aparente leveza, encontram-se as rochas, as casas escavadas nas rochas, firmes, eternas, imutáveis, fortalezas aprazíveis à semelhança das quais muitas vezes os seres humanos se tentam constituir. Assim aparente ser o Sono de Inverno mas pode tratar-se apenas de mais uma ilusão - afinal, o cinema é ilusão/representação. 


Classificação: 4/5

Por CS e PP


A luz que contém a sua ausência

A Bela de Dia (1967)
Tradicionalmente considerado filme erótico, Belle de Jour, do aclamado Buñuel, é, na realidade, um filme sobre o sonho. Contraditório? Assista.se à espiral de realidade dentro da realidade que é no fundo um sonho que é no fundo a realidade que representa a história de Séverine e Pierre, a contradição, a ilusão, omissão e engano são termos que virão à memória.

A personagem interpretada magistralmente por Catherine Deneuve representa a bela adormecida dos tempos modernos, em aparente dormência e frieza, que não procura mais que a excitação do que não é permitido e lhe habita os sonhos. Os sonhos de Séverine não acontecem apenas quando esta dorme ‐ com frequência o marido irrompe e lhe interrompe fantasias questionando‐a sobre em que pensa.

Bela de Dia, alter ego que assumirá ao entrar em funções pouco recomendadas numa conhecida casa de passe em Paris, à noite retoma a sua inexistência. 
Percorrer Belle de Jour é não ter a certeza de que passos estão a ser dados embora de início o filme conduza a essa ilusão ‐ afinal, quem não quer ter certezas? Sob a capa da vulgaridade e de certo fetichismo, oculta‐se uma espiral de acontecimentos cuja natureza não é completamente preto no branco. Esse imaginário ‐ também ele contraditório ‐ de binómios de raiz maniqueísta é recorrente em Bela de Dia. Eterna dualidade entre preto e branco que se complexifica com a chegada da personagem do conde e com a introdução do conceito de sol negro. Este sol negro do conde remete para a luz que contém a sua ausência sem se anular e não exclusivamente para a existência de elementos opostos ‐ dentro de um habita o outro sem que a existência seja incompatível desse modo.

Séverine conduz ou é conduzida pelas estreitas vielas de uma vida dupla a que se sente inexplicavelmente atraída ‐ e que é, ao mesmo tempo, uma dupla vida de sentimentos. De dia, sente‐se viva e preenchida, à noite profundamente aborrecida, ainda que aos poucos a experiência diurna acabe por influenciar a sua personalidade nocturna. Lentamente, as duas Séverines fundem‐se mas ambos os mundos se fundem de igual modo, tornando cada vez mais difusas as fronteiras rígidas que os separavam. Tão rígidas como o jogo de forças, poder, submissão, domínio e ordens com que se familiarizou na casa de Anais, as fronteiras quebram‐se para o lado mais fraco e a Séverine nocturna será inundada pela experiência e preenchimento da Séverine diurna.

À quoi pense toi, Séverine? Pergunta Pierre com frequência mas Séverine está ausente a viver em pensamento a vida que gostaria de viver, sonha acordada. No final, contudo, os sonhos cessam e são possíveis inúmeras especulações sobre se Séverine se encontra acordada ou se está finalmente a viver o seu maior sonho na realidade. Tal como a cena da misteriosa caixa do cliente japonês na casa de Anais, que Buñuel nunca quis explicar, também as conclusões e definições permanecem difusas e dificilmente definitivas.

Todo o filme é composto de subtilezas, desde as referências a felinos em momentos chave (na sua aproximação simbólica e sexual à mulher) até à associação onírica entre a carruagem com sinos e as fantasias de Séverine (a ironicamente severa Séverine). Subtilezas surrealistas, talvez, naquela que foi a grande aposta de Buñuel após o seu exílio mexicano e que não foi aposta ganha, tendo em conta o choque entre conservadorismo da sociedade de então e as imagens de perversidade e sexualidade.

Classificação: 4/5

Por CS

A Última Dança

Johnny Guitar (1954)
A utilização do termo western para descrever Johnny Guitar parece desadequada, como aliás tudo parece desadequado em Johnny Guitar. Simplesmente porque é redutor chamar-lhe um western quando contém em si quase todas as tipologias de filme, pelo que o melhor é esquecer as etiquetas para ver Vienna, a protagonista, e o seu pistoleiro. Com Johnny Guitar  (ou melhor, Johnny Logan), forma par amoroso aparentemente impossível e rege o saloon homónimo com mão de ferro, tentado manter afastados os habitantes conservadores de conservadora cidade na fronteira do Arizona.

Verdadeira self made woman, não é totalmente esclarecido em que medida ou em que bases é feita a construção sofrida do seu enclave, embora Vienna dê a entender que foi tarefa árdua. Instalada em ambiente hostil, o seu saloon não tem enquadramento físico explícito (que fica em segundo plano), como quase todas as sequências, não sendo, contudo, necessário que esse enquadramento seja feito. Apenas sabemos que àquela cidade irá, um dia, chegar o comboio e que será o ponto de viragem para todos - apenas Vienna o deseja, os restantes habitantes e, sobretudo, a sua nemesis Emma Small tentam a todo o custo afastar a vinda da civilização.

Interessante ainda que no cerne de Johnny Guitar não esteja quem dá nome ao filme mas sim duas personagens femininas. A importância concedida a Johnny Guitar no título, o pistoleiro que substituiu as armas pela guitarra que transporta, será perceptível à medida que vamos conhecendo o seu passado com Vienna. Ao contrário do que se espera num western clássico, é uma mulher que se encontra no centro de todos os acontecimentos, assumindo inclusivamente uma posição preponderante e dominante logo nos primeiros minutos de filme: Vienna assoma do topo das escadas, dirigindo-se a quem a interpela sempre naquele local, o segundo andar do saloon. Raramente surge armada e refere que não acredita na força das armas mas a personalidade de tal modo forte faz com que esse pormenor seja relegado para segundo plano. Vienna não usa armas nem anda a cavalo, assim como também não é a típica meretriz - não sendo, claramente, o estereótipo da mãe de família que commumente surge neste tipo de filmes.

Quem é Vienna? Ou, melhor dizendo, o que é Vienna? Uma mulher que subiu a pulso na vida, está à frente de um saloon/casa de jogo mas não acredita na sorte. Repetidas vezes pede apenas para ouvir a roleta unicamente pelo som que emite. É também uma mulher que sofre por amor e, embora possa parecer estranho, é essa ligação que representa a grande razão de ser de Johnny Guitar. Aliás, são as várias ligações amorosas as causadoras de sentimentos de vingança e ódio presentes em Dancin' Kid (também pistoleiro e gangster) e Emma Small, as personagens despeitadas - o primeiro por nunca ter conseguido que Vienna o amasse verdadeiramente, a segunda pelos ciúmes dessa ligação (ainda que o que o liga a Vienna seja superficial e passageiro).

Na base, são duas mulheres em confronto e é em torno de ambas que as forças vitais do filme se movimentarão. Emma Small (pequena em apelido e literalmente) deixará para trás o luto pelo irmão acidental e misteriosamente assassinado para assumirem definitivo o seu papel vingador ainda que não justiceiro porque sem fundamento objectivo, quer destruir Vienna e isso é quanto basta. O seu carácter mesquinho e pequeno fica bem representado no momento do discurso às "tropas" que perseguem Vienna e Johnny Guitar (em fuga após a tentativa de linchamento público perpetrada sobre Vienna), quando o seu rosto surge em grande plano mas parcialmente obscurecido pela sombra da árvore sob a qual se posta.

A oposição entre Vienna e Emma é finalmente assumida quando a primeira surge vestida totalmente de branco, tornando-se claro o posicionamento de ambas, dado que Emma envergará até ao final o vestido de luto - que, sem o véu, toma aparência religiosa no sentido fanático. Branco e preto em oposição, o bem e o mal delineados na totalidade e sem zonas cinzentas.

Quando o saloon de Vienna é alvo de fogo posto, torna-se quase impossível não pensar na Segunda Grande Guerra, quando finalmente Viena de Áustria sucumbe às mãos dos aliados e é irmãmente dividida pelos mesmos. À altura das filmagens de Johnny Guitar, estava-se em plena Guerra Fria e a todo o vapor pela era McCarthy, de caça às bruxas - todos os simpatizantes ou ligados de alguma forma ao Partido Comunista eram perseguidos. É por esse motivo que ainda hoje um dos grandes mistérios que envolve Johnny Guitar se prende com o verdadeiro guionista: reza a lenda que o nome que vem nos créditos apenas lá se encontra para encobrir um dos perseguidos da grande caça às bruxas, que não pôde tornar o seu nome público.

Em Johnny Guitar existem inúmeros géneros ou até inúmeros filmes. Em primeiro plano, um triângulo amoroso pouco intenso - Joan Crawford na sua frieza típica confere um afastamento a Vienna que não permite que as emoções transpareçam. Em segundo plano, um caso complicado de despeito, o de Emma, apaixonada por Dancin' Kid, querendo contudo vê-lo morto juntamente com Vienna, a eterna rival. 

Trata-se de um mundo visto de modo maniqueísta, preto no branco, aparentemente simplista nesse jogo em que se move mas complexo porque baseado em emoções. O duelo que opõe as duas mulheres é um duelo sem armas, apesar de, a espaços, armas sejam utilizadas - mas estritamente quando necessário. Ironicamente, Johnny Guitar é um gritante filme de gritantes cores (e o primeiro a cores do realizador Nicholas Ray), fazendo quase esquecer as oposições simplistas, saturado mas trazendo para primeiro plano a inesquecível personalidade de Joan Crawford - também inesquecível a imagem de marca de lábios intencionalmente pintados de vermelho e fora das linhas naturais. O extravagante uso da cor não faz esquecer os cenários inverosímeis e infantilmente desenhados, contudo ajuda a mitigar alguns dos desvios pelos quais é pouco provável que o olhar não siga.

Johnny Guitar não representa o típico western em nenhum aspecto mas isso também é perceptível num contexto de renovação linguística por que este género cinematográfico passava à época. A introdução de personagens centrais femininos, longe dos estereótipos masculinos e da linguagem clássica, os laivos de musical - visíveis no tema final, interpretado por Peggy Lee -, a secundarização das armas com recurso a mais subtis mecanismos de vingança (apesar de se poder assistir com clareza à morte de um personagem com um tiro na cabeça), um certo imobilismo dos personagens (que circulam em espaços restritos de acção) levam para longe da mente aquilo que se entende por western na acepção mais pura do género.

Vienna constrói o saloon incrustado na rocha, base sólida, e aguarda pacientemente a chegada do movimento, não se trata aqui de longas perseguições no deserto, resgatar o território ou chacinar nativos americanos. Vienna permanece num ponto fixo e a busca vem até si, por força de carácter ou do decorrer natural dos eventos. 

A roleta da sorte pára no momento em que o confronto, a tensão, estão prestes a estalar mas permanece em funcionamento ao longo de Johnny Guitar, não só de meios próprios e concretos vive uma mulher.

Classificação: 4/5

Por CS

A Cartilha

Boa Noite, e Boa Sorte (2005)

O preto e branco está associado à cinematografia clássica embora metaforicamente acompanhe a ideia de cinzentismo, a algo que permanece imutável e/ou pertence ao passado. Utilizado no cinema hodierno, é sinónimo de linguagem, de mensagem, de algo propositado e com finalidade, não uma limitação técnica como outrora o foi.

O caso de Boa Noite, e Boa Sorte poderia ser um desses momentos de vanguarda linguística e, de facto, tem todos os ingredientes para o ser. Inexplicavelmente, talvez lhe falte aquilo que não reside na técnica mas no que agrega um filme de tal maneira que o torne inesquecível. Boa Noite, e Boa Sorte está muito longe de ser inesquecível, arriscando-se com muita probabilidade a ser lembrado só como um filme de Clooney.

Centrado em interessantíssimo tema, na verdade, tem, como se disse, tudo para ser um bom filme, inclusive grandes actores. Porque é que o tudo não resulta? Foi feito pelas regras e para transmitir uma mensagem que tem cabimento em cinema mas não como se se tratasse de um livro ou transmissão radiofónica. Na maior parte do tempo, impera o estático, o estético sem volumetria, sem grandes inspirações ou impulsos que sustentem o facto de não existir um clímax propriamente dito.

Onde se situa o palco de Boa Noite, e Boa Sorte? Na América da caça às bruxas, dos perigosos comunistas infiltrados, da censura dos meios de comunicação, da obsessiva perseguição do senador McCarthy, em plena Guerra Fria. Clooney transpõe de forma irrepreensível todo esse ambiente mas mostra-o em duas dimensões, com discursos, com disputas de jornais e televisões que existiram na realidade mas que neste contexto necessitavam de maior dinamismo. 

Entre mãos, temos um punhado de homens e mulheres de características pinceladas a lugares comuns, como que construídos a partir de um manual de História norte americana ou a partir de outros filmes, outras visões, outros documentários. Aquilo que se encontra em Boa Noite, e Boa Sorte aparenta ter sido recortado de variadas cartilhas sem almejar algo de seu, de próprio.

O casal proibido, o jornalista fraco, o jornalista forte, o ajudante do jornalista forte, o director de jornal benevolente. Estas personagens, tal como os acontecimentos, são reais mas Clooney quase os situou numa qualquer novela da vida real, movimentados pelos cordelinhos da História, sem personalidade própria, sem contornos, deambulando por competentes cenários, competente enquadramento e audaz mensagem.

Quis passar-se a mensagem dos tempos que ninguém nega ser importante e, curiosamente, hoje tão ou mais importante do que à época: a dos meios de comunicação em evolução (a televisão) e do seu poder de manipulação das massas através da política. Essa mensagem é muito clara e é a razão de ser de Boa Noite, e Boa Sorte, trazendo para a actualidade um tema que poderia parecer ultrapassado ou esquecido e que, afinal, se enquadra tão bem hoje como há 60 décadas. O Clooney conhecido activista das liberdades (sem ironia entendida na expressão) quis expor e tomar posições através do cinema.

A imagem de um jornalismo que mostra a verdade por oposição às areias movediças da política é aqui retratada com justiça e hombridade, até mesmo com a seriedade e sobriedade que homens como Murrow merecem. Talvez por entender a sobriedade com tanto afinco, Boa Noite, e Boa Sorte queda-se por ser rígido, pouco dinâmico pese embora competente em todas as áreas. Belíssima fotografia, actores competentes, argumento competente. Falta-lhe muita coisa para as três dimensões, fica pela competência de seguir o guião sem exagerada inspiração, sem algo que nos tire o fôlego, sem algo que espante. Competente mas desinspirado.

Classificação: 2/5

Por CS