A Cartilha

Boa Noite, e Boa Sorte (2005)

O preto e branco está associado à cinematografia clássica embora metaforicamente acompanhe a ideia de cinzentismo, a algo que permanece imutável e/ou pertence ao passado. Utilizado no cinema hodierno, é sinónimo de linguagem, de mensagem, de algo propositado e com finalidade, não uma limitação técnica como outrora o foi.

O caso de Boa Noite, e Boa Sorte poderia ser um desses momentos de vanguarda linguística e, de facto, tem todos os ingredientes para o ser. Inexplicavelmente, talvez lhe falte aquilo que não reside na técnica mas no que agrega um filme de tal maneira que o torne inesquecível. Boa Noite, e Boa Sorte está muito longe de ser inesquecível, arriscando-se com muita probabilidade a ser lembrado só como um filme de Clooney.

Centrado em interessantíssimo tema, na verdade, tem, como se disse, tudo para ser um bom filme, inclusive grandes actores. Porque é que o tudo não resulta? Foi feito pelas regras e para transmitir uma mensagem que tem cabimento em cinema mas não como se se tratasse de um livro ou transmissão radiofónica. Na maior parte do tempo, impera o estático, o estético sem volumetria, sem grandes inspirações ou impulsos que sustentem o facto de não existir um clímax propriamente dito.

Onde se situa o palco de Boa Noite, e Boa Sorte? Na América da caça às bruxas, dos perigosos comunistas infiltrados, da censura dos meios de comunicação, da obsessiva perseguição do senador McCarthy, em plena Guerra Fria. Clooney transpõe de forma irrepreensível todo esse ambiente mas mostra-o em duas dimensões, com discursos, com disputas de jornais e televisões que existiram na realidade mas que neste contexto necessitavam de maior dinamismo. 

Entre mãos, temos um punhado de homens e mulheres de características pinceladas a lugares comuns, como que construídos a partir de um manual de História norte americana ou a partir de outros filmes, outras visões, outros documentários. Aquilo que se encontra em Boa Noite, e Boa Sorte aparenta ter sido recortado de variadas cartilhas sem almejar algo de seu, de próprio.

O casal proibido, o jornalista fraco, o jornalista forte, o ajudante do jornalista forte, o director de jornal benevolente. Estas personagens, tal como os acontecimentos, são reais mas Clooney quase os situou numa qualquer novela da vida real, movimentados pelos cordelinhos da História, sem personalidade própria, sem contornos, deambulando por competentes cenários, competente enquadramento e audaz mensagem.

Quis passar-se a mensagem dos tempos que ninguém nega ser importante e, curiosamente, hoje tão ou mais importante do que à época: a dos meios de comunicação em evolução (a televisão) e do seu poder de manipulação das massas através da política. Essa mensagem é muito clara e é a razão de ser de Boa Noite, e Boa Sorte, trazendo para a actualidade um tema que poderia parecer ultrapassado ou esquecido e que, afinal, se enquadra tão bem hoje como há 60 décadas. O Clooney conhecido activista das liberdades (sem ironia entendida na expressão) quis expor e tomar posições através do cinema.

A imagem de um jornalismo que mostra a verdade por oposição às areias movediças da política é aqui retratada com justiça e hombridade, até mesmo com a seriedade e sobriedade que homens como Murrow merecem. Talvez por entender a sobriedade com tanto afinco, Boa Noite, e Boa Sorte queda-se por ser rígido, pouco dinâmico pese embora competente em todas as áreas. Belíssima fotografia, actores competentes, argumento competente. Falta-lhe muita coisa para as três dimensões, fica pela competência de seguir o guião sem exagerada inspiração, sem algo que nos tire o fôlego, sem algo que espante. Competente mas desinspirado.

Classificação: 2/5

Por CS

Uno e divisível

Lady Snowblood (1973)

Para lá de qualquer possível atracção visual, apresenta-se um complexo plano de vingança pessoal - e, talvez, quem sabe, universal, de purificação espiritual, expurgar de sofrimento e corrupção.

Fala-se de Lady Snowblood, um dos filmes que reconhecidamente inspiraram Quentin Tarantino para o seu Kill Bill. Não se gerem ilusões, o imparável realizador recolheu daqui muitos elementos mas soube dar-lhes a roupagem de que necessitavam para se integrarem no novo século e, afinal, são  universos e códigos de linguagem muito diferentes - embora a homenagem prestada seja de algum modo emocionante, emocionada, apaixonada.

Em Lady Snowblood, as aparências iludem até certo ponto e em inúmeros momentos é possível que estejamos a caminhar numa espiral, num labirinto ou, muito simplesmente, numa encenação - como o descer do pano no final de umas das sequências dá a entender. É uma história real ou uma banda desenhada? Uma vingança pessoal ou universal? Quem se esconde quem e quem procura quem, na realidade? Estamos mesmo no Japão do final do século XIX ou apenas num cenário?

Entre nocturnos e valsas triufantes, Yuki procurará dar seguimento àquilo que a sua mãe iniciou e não pôde terminar. Nascida no submundo, filha do verdadeiro submundo e das intenções mais subterrâneas, uma mulher nasce bebendo do seu próprio sangue envenenado para cumprir apenas uma missão muito específica. Para Yuki, a infância representou um longo treino de guerra com o objectivo de limpar a honra perdida mas também de purificar o cenário local da corrupção das almas. Yuki surge em noite de nevão, a neve que vinga mas simultaneamente limpa aqueles que se corromperam e à própria Yuki, cujo carma se anuncia anos antes do seu nascimento - tal como a própria parece sugerir.

A predestinação para a vingança é continuamente relembrada embora Yuki seja capaz da emoção - isso é visível em escassos momentos do filme e servirá talvez para que não seja esquecido de que falamos de um ser humano capaz de compaixão. Confrontada com a duplicidade da natureza humana, é a primeira a retirar a máscara e mostrar-se na sua plenitude, não tendo, aliás, muito a esconder desde o início.

O que faz de LadySnowblood um filme corpulento (no melhor dos sentidos possível), é precisamente aquilo que não entra no festival de sangue com que o espectador é presenteado - neste aspecto não existem ilusões, os efeitos visuais são trazidos para impressionar, de modo directo e sem rodeios. Ao mesmo tempo que do início ao fim membros são cortados e o sangue artificial jorra de todos os poros possíveis de encontrar no corpo humano, vai sendo expurgada e contada a história recente do Japão, não sem entrarem em confronto a tradição nipónica com a modernidade ocidental. A bandeira norte-americana colocada ao lado da japonesa em determinado momento talvez não seja inocente, bem como o modo como será tratada a segunda - olhar demasiado crítico para a linguagem cinematográfica nipónica.

O aspecto graficamente explícito e os momentos representados pela banda desenhada não são um acaso ou um devaneio, já que na concepção do argumento se encontra o autor de manga Kazuo Koike, em cuja obra o filme se baseou. A narrativa visual acompanhada da voz off do jornalista é uma janela por entre a qual corre uma fresca brisa de linguagem cinematográfica.

Em última análise, o sol que nasce sobre Yuki no início representa não só o seu próprio nascimento real como também uma nova oportunidade, um renascimento social, depois de ultrapassados os tempos sociais conturbados a que não assistiu. Yuki vinga a sua história pessoal mas também surge para eliminar os vestígios daquele passado recente para dar lugar ou passagem a uma nova era. O sol que nasce, o sol nascente sobre Yuki e sobre o território, sobre um novo território, uma oportunidade de recomeçar.

A mulher vingadora que nasce no interior da prisão, é aprisionada num carma que a precede, que precede o seu nascimento. Aprisionada pelo destino, Yuki mais não representa que o novo mundo irrompendo com estridência nas velhas estruturas, ultrapassadas e indesejadas. Fá-lo com dupla violência e fôlego, dúplice que também surge enquanto personagem da peça de teatro em que foi lançada. Sem hipótese de escolher o seu caminho e apesar de algum espaço para raras emoções humanas, parece ser apenas o meio de concretização de desejos que não são os seus. Os desejos que lhe brilham repetidamente nos olhos foram-lhe incutidos por outros, actua sem que possa algum dia destrinçar se essa é a sua vontade real.

Quando se pensa em Lady Snowblood, vem à memória o irrealismo dos efeitos especiais e a banda-sonora idílica, perfeita, todavia existem muitas camadas, mais do que o olho atinge. Por entre espadas e mortes, existem duplicidades não facilmente explicáveis. Duplicidade de uma vida que não é na verdade uma vida real, homens duplos de si mesmos irrompem pelo cenário após o aparente fim da tragédia - o filme continua para lá do cair do pano, parecendo querer transmitir que o seu objectivo vai para além das fronteiras do instituído. Sociedade tradicional em confronto com as novas ideias, traçando ou sugerindo um caminho diferente, construído de raiz e com um único propósito, completamente focado embora tão rígido como as estruturas do passado que espezinha. Contradição? É possível que represente uma contradição mas nenhuma das personagens do filme - ou tratar-se-á de uma tragédia grega? - está preocupada com isso, faz parte do caminho espiralado, da vingança dentro da vingança, dos percursos que se desdobram para dar a ilusão da escolha que não existe. Contradição? Sim.

Classificação: 4.5/5

Por CS
Repulsa (1965)

Aqui a eternidade

A Desaparecida (1956)

Um muro de que se faz luz, uma parede que se abre para a pradaria, uma casa que temporariamente alberga vida a pretexto de um desaparecimento - a busca incessante que serve de premissa a A Desaparecida de John Ford é a grande protagonista - assim tem início o filme.

Longe de todos os epítetos que o submergem, aqui tenta-se sobreviver à obsessão de Ethan - o confederado nunca assumidamente derrotado - em procurar a sobrinha raptada pelos índios nativo-americanos. Um procura aparentemente longa (são cinco anos reais e cerca de duas horas de filme) esconderá outras motivações? Poder-se-á calcular que sim embora tal nunca seja claramente definido ao longo do filme.

Ethan surge na abertura do filme e da casa da família fabulosamente enquadrado por uma das mais deslumbrantes sequências em cinema (e que as palavras são sempre insuficientes para descrever), chegando por fim de uma guerra que quase parece imaginada - aliás, por onde terá andado Ethan entre o final da guerra civil e a data de início do filme? Mas uma porta se abre para o mundo, onde antes se encontrava obscuridade, parecendo querer absorver no seu calor a frieza da silhueta do forasteiro Ethan.

Apenas subrepticiamente é sugerido que Ethan é uma espécie de forasteiro: andou longe de casa 3 anos após a guerra, volta com dinheiro não numerado e sem grandes pormenores quanto aos trilho que sulcou - um pouco à semelhança dos trilhos deixados pelos índios, Ethan sulca os seus de forma a deixar apenas poeira e pistas confusas.

A busca pela sobrinha raptada é um verdadeira odisseia, polvilhada por alguns avanços e recuos. Ethan, o homem que já não possuía nenhuma outra razão aparente para voltar a partir, oportunamente pode deixar de ser importunado pelo passado e pela curiosidade dos parentes e parte para procurar aquela que se tornará no seu único elo de ligação com a vida familiar. 

Ethan envelhece nesta derradeira busca que mais não é que a igualmente derradeira tentativa de se procurar, de se compreender, de se encontrar - ainda que talvez o faça sem consciência de tal. A meio da jornada, enterrará a sua última ligação à confederação numa tentativa de encerrar o que está para trás. Debbie não representa apenas o elo de ligação à estabilidade nunca conseguida de uma família, da rotina, da luta diária contra terreno inóspito para o tornar fértil - mas também a luta da protecção contra invasores.

Em A Desaparecida, o que se encontra desaparecida é a estabilidade, são as fronteiras, tal como o ritmo do filme nos incita a sentir. Sem nunca cessar, saímos do cenário instável da guerra civil, deixado definitivamente no passado e entramos na quase interminável corrida contra o tempo - entre índios, búfalos, perseguições, brigas intestinas, diferenças familiares e humanas.

O primeiro plano que nos obriga a sair de casa para a luz intensa do deserto, abandonando o conforto daquelas quatro paredes onde muitas vezes o pequeno-almoço é simultaneamente religioso e civil, é o mesmo plano que nos volta a enclausurar. O homem que se abre para o exterior voltar a encerrar dentro de si a esperança com que retorna e esse desejo não é tão simples como parece. 

Complexo, conflituoso, à semelhança das relações humanas aqui representadas, é ao mesmo tempo um desejo de conforto e de liberdade em que a casa surge como aconchego mas também clausura - e talvez o muro que surge no genérico faça parte dessa dupla natureza que é, no fundo, somente humana. Um muro é barreira e estímulo para que se o destrua e muitas vezes os homens se dilaceram nesta dualidade sem necessariamente existir um fim.

Por todos os motivos e mais alguns, A Desaparecida não é só um western, não é só um filme de índios e cowboys, não é só um filme, é um tratado, um enredo, uma trama que não apresenta apenas as óbvias lutas por território, é uma luta do homem contra e a favor de si próprio - contradição após contradição.

Classificação: 5/5


Por CS

Esculturas Incompletas

Nebraska (2013)

Woddy Grant. Um homem que coxeia pela vida fora, dependente do álcool, uma incógnita para todos até para si próprio, um homem sem vitória, sem glória. Uma vida como tantas outras, entre tantas outras, a preto e branco, sem grandes laivos de criatividade, sem grandes feitos ou sem feitos dignos de menção. Um casamento porque sim, dois filhos porque sim, os sonhos perdidos pela calçada como migalhas de pão à espera de serem encontradas, como preces ansiando por serem ouvidas.

Em Nebraska, reside a derradeira jornada - A jornada -, aquela em que são investidas as últimas forças, em que ainda parece possível redimir todas as falhas, todas as ausências, todas as omissões. Num pedaço de papel Woody irá colocar a esperança e os sonhos que não realizou, como se disso dependesse tudo o que está para trás e que não foi concretizado.

Vão sendo desfiadas ao longo da viagem até Lincoln para reclamar o almejado prémio diversas memórias e facetas dos vários intervenientes - em que raramente as versões coincidem. Curiosa a construção de várias perspectivas sobre a realidade, sem que se chegue propriamente a uma conclusão - não é esse o objectivo. Cada interveniente mostra apenas a sua versão da história, não necessariamente igual à do vizinho ou do primo.

Woody faz parte da família Grant e os homens Grant falam pouco, todos eles. Alexander Payne brinca com esse factor e introduz uma imagem monte rushmoriana assaz jocosa aquando do reencontro da família na casa da tia Martha. Aquele silêncio rochoso, as palavras arrancadas a ferros, a informação sucinta e resumida, homens esculpidos à semelhança do Monte Rushmore, versões inacabadas, incompletas - recorrendo à definição do próprio Woody.

No final, não vencer torna-se pouco importante, estreitam-se laços familiares e, acima de tudo, laços humanos. Recebe-se o brinde de ter passado finalmente tempo em conjunto, após uma longa vida de percalços e falhas de comunicação. Traz-se para casa um boné de vencedor sem o ter sido na acepção moderna da palavra, longe do sucesso material ou até mesmo de uma existência de glórias e feitos dignos de menção.

Nebraska fala-nos sobre pessoas mal esculpidas, feitas de cansaço e falhas, fala de uma família conturbada como tantas outras famílias mas com desejo de reparação através da arte. A diferença fulcral entre as esculturas rochosas e as pessoas é que estas últimas têm a oportunidade de aceitar as suas limitações e viver com elas o mais pacificamente possível. Aceitar que nem tudo é aceitável mas que talvez seja possível conviver com isso, viver com isso, sobreviver bem com isso.

Apesar de ser um bom filme, assenta em premissas já muito vistas em cinema, lugares-comuns suficientes para deixarem a sensação de que se encontra em esforço, tentando juntar as peças e não dando o devido espaço ao espectador para que tire as suas conclusões. Está tudo lá.

Classificação 4/5

Por CS