Tratado da Apatia

Em Ossos deambulam corpos que carecem de vida, respiram, olham incessantemente um horizonte que não lhes responde, assim como também não lhe fazem perguntas. É em silêncio que se movem pelas sinuosas vielas do bairro das Fontainhas, num movimento pendular, mecânico, só porque têm de manter o equilíbrio precário do microcosmos.

No seio da apatia, surge uma nova vida em que todos os sonhos poderiam residir. Em todas as vidas residem todos os sonhos, no começo. É o mecanismo da necessidade que os queima e deixa fenecer os sonhos e é nesse mecanismo que a vida se desenha - entre a rua e as casas de portas fechadas, entre um quarto inundado de gases nocivos e um sofá de pensão mal afamada.

Em Ossos, a beleza é crua, concretizada em grandes planos de profundo tédio, aborrecimento e apatia, uma enorme sonolência percorre os rostos belos mas marcados que Pedro Costa mostra incessantemente. Quietos, calados, olhando em aparente profundidade todavia profundamente perdidos na solidão de cada corpo sem carne, sem esperança, com loucuras na cabeça - sempre aquele desejo de morrer e acabar com a dormente espera até ao fim inevitável.

Cada corpo faz a sua dança de sobrevivência fingida, falsa, em falso, alimenta esporadicamente as necessidades básicas - «Já não como há 3 dias», lamenta-se o pai da criança indesejada, ao mesmo tempo que mastiga o tempo e a indiferença. Entre o bocejo e o lamento, a única vida possível é lentamente extirpada, a criança que nasce fruto do longo aborrecimento surge como uma ameaça séria ao equilíbrio de nadas em que as personagens se movem.

Tecnicamente, Ossos não tem grandes segredos, é um filme de claro-escuro, que respira através da obscuridade e do eterno jogo entre o que se torna visível pela luz e aquilo que fica convenientemente ocultado na sombra. Optando pela simplicidade, segura nas suas mãos fortes a essência dos rostos impiedosos, tristes, desenhados a carvão, pouco emocionados, cansados. Por entre frestas de portas, espreitam muitas vezes, como que temendo a luz ou a exposição, numa ambígua violência do silêncio.

Ossos é um filme que vive das ausências, despido de paliativos, despido de efeitos, real como a vida, desolado como o desejo da morte, desesperançado - em que as pessoas se colocam lado a lado alimentando a réstia de esperança de que possam comunicar sem, contudo, o conseguirem.

Silêncio e arrependimento, alimento de corpo que já não quer receber alimento, vidas sem vida, labirintos de ruas degradadas a que se chama casa com fantasmagórica familiaridade, criando raízes num chão falso, recebendo ofensas sem ter forças para retorquir.

É por tudo aquilo que não é dito que Ossos é um filme que não fica na prateleira mas salta para a vida, embora sem fúria, embora sem aparente centelha - mas é porque a centelha não existe nestas vidas e talvez não seja possível fazer fogo de onde se ausenta fonte que o alimente.

Classificação: 5/5
Por CS

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