Após a bonança

Sono de Inverno (2014)
Criar ilusões é uma característica humana, intrínseca, usada para fugir à certa realidade ou simplesmente por nela se encontrar bem estar - nessa representação que chega a parecer que é necessidade.
A visão de Nuri Bilge Ceylan acerca da descrita capacidade inata, vai tornando-se recorrente. Paira sobre os personagens uma dormência dos sentidos, uma contemplação infinita, como se o tempo fosse durar para sempre. No fundo, ele suspende-se sempre que em Sono de Inverno o realizador se perde na figura imponente de Aydin (anteriormente actor, agora rico, culto, escritor e filantropo anónimo). O tempo suspende-se quando a câmara tenta penetrar nos meandros do personagem através da sua nuca para depois se perder na escuridão encontrada, insondável, indizível.

No ar, por todo o filme, existem ideias que não são ditas, os debates assumem a aparência de discussão académica até ao momento em que os intervenientes deixam de fingir ou deixam de ter paciência para manter aparências.
Por entre casas escavadas e construídas na rocha, pela paisagem belíssima da Anatólia Central, Turquia, movem-se seres humanos que lentamente se mesclam com as rochas. A partir de uma certa idade pouco se muda, alguém diz, e acrescente-se que a distinção entre pessoas e o espaço inóspito que habitam pouco a pouco se vai diluindo. Obstinados, determinados, são os homens e mulheres de Ceylan, percorrendo atalhos de uma vida adiada, sonolenta não só no Inverno que irrompe tempestuosamente mas pelas outras estações afora. Sem objectivos, eivados de dependências materiais e emocionais, agarrados a uma miséria que tanto prospera no fausto como na pobreza.

No hotel de que Aydin é responsável, chegam e partem constantemente pessoas apreciadoras da natureza às quais se apega contando histórias e recebendo em troca as experiências dos viajantes. Mas no Othello (assim se designa o hotel) monta-se o palco em honra da sociabilidade farsante, a mesma que permite a coexistência de filantropia e exacerbado poder económico no mesmo personagem. 
Da peça apercebem-se pedaços, fragmentos, à medida que caem as máscaras, as mesmas que Aydin coloca simbolicamente sentado à secretária do escritório onde desenha há muito tempo a escrita da história do teatro turco. Quando a caça se adensa, algumas presas, apesar de mortalmente feridas, continuam a agarrar-se teimosamente à vida, persistindo, insistindo em respirar - tal como o coelho que o ex-actor alcança na imensidão nevada.

Dentro de espaços fechados, aos poucos os homens e mulheres de Ceylan perseguem-se e cansam-se, à semelhança do enorme esforço que é feito para laçar o cavalo selvagem da Anatólia que Aydin tanto queria para utilizar no hotel. Os animais selvagens que lutam e despendem de toda a energia possível para se manterem livres, lentamente se entregam a esse sono de Inverno, desistem de querer a liberdade que outrora fazia parte. Lentamente, também os homens e mulheres que habitam Othello se acostumam a não viver, adormecidos pelo conforto, pela falta de ter para onde ir, pela necessidade de calor ou simplesmente porque mudar já não parece uma opção. Já passou demasiado tempo, agora é tarde, confidencia alguém entre lágrimas.

Não se julgue etéreo ou até superficial, este Sono de Inverno, muito pelo contrário, é denso como o espesso manto de neve que se abate sobre o território das gentes obstinadas. Através dele, muitas conversas de pendor filosófico, nada é deixado ao acaso, nenhuma palavra é dita em vão, pesada e ponderada, todas elas atiradas para atingir pontos nevrálgicos. 

Visualmente belíssimo, Sono de Inverno é contemplação e confronto, é seguir a pé por atalhos gelados e descobrir que o gelo também derrete, que o calor do fogão ou da lareira ou do gerado pela ingestão de demasiado álcool é capaz de colocar a descoberto o que antes ficara ocultado pela aparente serenidade da neve. Por debaixo dessa aparente leveza, encontram-se as rochas, as casas escavadas nas rochas, firmes, eternas, imutáveis, fortalezas aprazíveis à semelhança das quais muitas vezes os seres humanos se tentam constituir. Assim aparente ser o Sono de Inverno mas pode tratar-se apenas de mais uma ilusão - afinal, o cinema é ilusão/representação. 


Classificação: 4/5

Por CS e PP


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