Uno e divisível

Lady Snowblood (1973)

Para lá de qualquer possível atracção visual, apresenta-se um complexo plano de vingança pessoal - e, talvez, quem sabe, universal, de purificação espiritual, expurgar de sofrimento e corrupção.

Fala-se de Lady Snowblood, um dos filmes que reconhecidamente inspiraram Quentin Tarantino para o seu Kill Bill. Não se gerem ilusões, o imparável realizador recolheu daqui muitos elementos mas soube dar-lhes a roupagem de que necessitavam para se integrarem no novo século e, afinal, são  universos e códigos de linguagem muito diferentes - embora a homenagem prestada seja de algum modo emocionante, emocionada, apaixonada.

Em Lady Snowblood, as aparências iludem até certo ponto e em inúmeros momentos é possível que estejamos a caminhar numa espiral, num labirinto ou, muito simplesmente, numa encenação - como o descer do pano no final de umas das sequências dá a entender. É uma história real ou uma banda desenhada? Uma vingança pessoal ou universal? Quem se esconde quem e quem procura quem, na realidade? Estamos mesmo no Japão do final do século XIX ou apenas num cenário?

Entre nocturnos e valsas triufantes, Yuki procurará dar seguimento àquilo que a sua mãe iniciou e não pôde terminar. Nascida no submundo, filha do verdadeiro submundo e das intenções mais subterrâneas, uma mulher nasce bebendo do seu próprio sangue envenenado para cumprir apenas uma missão muito específica. Para Yuki, a infância representou um longo treino de guerra com o objectivo de limpar a honra perdida mas também de purificar o cenário local da corrupção das almas. Yuki surge em noite de nevão, a neve que vinga mas simultaneamente limpa aqueles que se corromperam e à própria Yuki, cujo carma se anuncia anos antes do seu nascimento - tal como a própria parece sugerir.

A predestinação para a vingança é continuamente relembrada embora Yuki seja capaz da emoção - isso é visível em escassos momentos do filme e servirá talvez para que não seja esquecido de que falamos de um ser humano capaz de compaixão. Confrontada com a duplicidade da natureza humana, é a primeira a retirar a máscara e mostrar-se na sua plenitude, não tendo, aliás, muito a esconder desde o início.

O que faz de LadySnowblood um filme corpulento (no melhor dos sentidos possível), é precisamente aquilo que não entra no festival de sangue com que o espectador é presenteado - neste aspecto não existem ilusões, os efeitos visuais são trazidos para impressionar, de modo directo e sem rodeios. Ao mesmo tempo que do início ao fim membros são cortados e o sangue artificial jorra de todos os poros possíveis de encontrar no corpo humano, vai sendo expurgada e contada a história recente do Japão, não sem entrarem em confronto a tradição nipónica com a modernidade ocidental. A bandeira norte-americana colocada ao lado da japonesa em determinado momento talvez não seja inocente, bem como o modo como será tratada a segunda - olhar demasiado crítico para a linguagem cinematográfica nipónica.

O aspecto graficamente explícito e os momentos representados pela banda desenhada não são um acaso ou um devaneio, já que na concepção do argumento se encontra o autor de manga Kazuo Koike, em cuja obra o filme se baseou. A narrativa visual acompanhada da voz off do jornalista é uma janela por entre a qual corre uma fresca brisa de linguagem cinematográfica.

Em última análise, o sol que nasce sobre Yuki no início representa não só o seu próprio nascimento real como também uma nova oportunidade, um renascimento social, depois de ultrapassados os tempos sociais conturbados a que não assistiu. Yuki vinga a sua história pessoal mas também surge para eliminar os vestígios daquele passado recente para dar lugar ou passagem a uma nova era. O sol que nasce, o sol nascente sobre Yuki e sobre o território, sobre um novo território, uma oportunidade de recomeçar.

A mulher vingadora que nasce no interior da prisão, é aprisionada num carma que a precede, que precede o seu nascimento. Aprisionada pelo destino, Yuki mais não representa que o novo mundo irrompendo com estridência nas velhas estruturas, ultrapassadas e indesejadas. Fá-lo com dupla violência e fôlego, dúplice que também surge enquanto personagem da peça de teatro em que foi lançada. Sem hipótese de escolher o seu caminho e apesar de algum espaço para raras emoções humanas, parece ser apenas o meio de concretização de desejos que não são os seus. Os desejos que lhe brilham repetidamente nos olhos foram-lhe incutidos por outros, actua sem que possa algum dia destrinçar se essa é a sua vontade real.

Quando se pensa em Lady Snowblood, vem à memória o irrealismo dos efeitos especiais e a banda-sonora idílica, perfeita, todavia existem muitas camadas, mais do que o olho atinge. Por entre espadas e mortes, existem duplicidades não facilmente explicáveis. Duplicidade de uma vida que não é na verdade uma vida real, homens duplos de si mesmos irrompem pelo cenário após o aparente fim da tragédia - o filme continua para lá do cair do pano, parecendo querer transmitir que o seu objectivo vai para além das fronteiras do instituído. Sociedade tradicional em confronto com as novas ideias, traçando ou sugerindo um caminho diferente, construído de raiz e com um único propósito, completamente focado embora tão rígido como as estruturas do passado que espezinha. Contradição? É possível que represente uma contradição mas nenhuma das personagens do filme - ou tratar-se-á de uma tragédia grega? - está preocupada com isso, faz parte do caminho espiralado, da vingança dentro da vingança, dos percursos que se desdobram para dar a ilusão da escolha que não existe. Contradição? Sim.

Classificação: 4.5/5

Por CS

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